Exclusivo. Secretário de saúde de Ilhéus, Geraldo Magela, é acusado de aplicar um “golpe” numa idosa de 73 anos

                                                                     Geraldo Magela.


Clarice de Cunto vai completar 74 anos em junho deste ano. Ex-empresária, durante muitos anos foi dona de uma distribuidora de produtos descartáveis e de limpeza em São Paulo. Depois das muitas voltas que a vida deu, hoje ela divide um apartamento com Idália, sua ex-sócia e amiga de longa data. As duas residem na capital paulista e pagam pelo aluguel do pequeno imóvel R$ 1.340 por mês.

Clarice nunca foi casada e não teve filhos. Seus parentes mais próximos residem no interior do estado de São Paulo. Típica aposentada brasileira de baixo poder aquisitivo, não tem funcionária ou cuidadora. Problemas de saúde sérios afirma que não tem. “Sinto apenas alguns tremores, mas não costumo ir ao médico”. Sobre o orçamento apertado explica: “tive que tomar uma decisão: ou pagava aluguel ou pagava plano de saúde. Fui obrigada a escolher as despesas do apartamento para não ficar sem um teto”.

Com a pandemia do novo coronavírus, Clarice tem seguido as recomendações do isolamento social e está confinada em casa. Para adquirir produtos de primeira necessidade, tem ligado para um supermercado próximo que entrega em domicílio.

O maior receio de Clarice neste momento é a Covid-19. Idosa e pertencente ao grupo de risco, ela teme não estar viva para ver a Justiça definir uma questão que lhe envolve diretamente. Em 2013, ela afirma ter sido seriamente prejudicada por um homem que “adquiriu” o único imóvel que lhe pertencia. Esse fato mudou completamente a sua vida.

Clarice comprou uma casa em Olivença em 1999 e seu objetivo era morar perto de uma irmã. Depois de um tempo, a parente mudou-se para São Paulo e ela foi junto. O imóvel passou a ser alugado, mas os problemas com a conservação tornaram-se comuns.

Em 2013 Clarice vendeu a casa para Geraldo Magela Ribeiro, atual secretário de saúde de Ilhéus. Os detalhes da transação ao longo de dois anos, segundo relato da idosa, colocam o caráter do comprador em dúvida.

Clarice e Magela acordaram o valor do imóvel em R$ 350 mil. O comprador daria R$ 50 mil à vista e o restante seria financiado pela Caixa Econômica Federal. No ato da assinatura do contrato de compra e venda, Magela pagou apenas R$ 15 mil e se comprometeu a pagar o restante (R$ 35 mil) em até 60 dias.

Clarice acreditou em Magela e retornou a São Paulo. Seu objetivo era acompanhar de perto o drama vivido por um sobrinho muito próximo que estava em tratamento devido a um câncer.

Enquanto ela estava em São Paulo ao lado do sobrinho que definhava, Magela não pagou o restante da entrada. Por motivos que desconhecemos, ele colocou uma de suas filhas, que é médica, como a compradora oficial. O financiamento da Caixa Econômica (em nome da filha) só foi liberado seis meses depois, mas com valor abaixo do acordado (R$ 256 mil) que foi depositado numa conta bancária de Clarice. Daí em diante, conforme consta no processo judicial, o caso ganhou características de um típico “golpe” aplicado numa pessoa indefesa.

Clarice estava abalada com o sofrimento do sobrinho e essa situação a deixou vulnerável. Ao mesmo tempo, conforme relato da senhora, Magela começou a dizer que não tinha como pagar o valor que faltava da entrada. Disse que possuía um apartamento em Itabuna cuja documentação não estava regularizada. A única saída era contrair empréstimo junto a um banco. O imóvel seria dado como garantia, mas para isso, era necessário providenciar os documentos. A regularização tinha um custo, mas ele não tinha o recurso. Magela pediu a Clarice que lhe emprestasse parte do dinheiro pago pela Caixa. Na esperança de receber tudo que ele lhe devia, a aposentada disse sim, várias vezes.

No processo que tramita na 4ª Vara de Feitos de Relação de Consumo Cíveis e Comerciais de Ilhéus (clique aqui), Clarice afirma que emprestou R$ 161 mil a Geraldo Magela. Parte do dinheiro que a Caixa Econômica pagou à aposentada, cuja origem é o financiamento realizado em nome da filha de Magela, foi parar, aos poucos, nas mãos do pai.

A advogada de Clarice, Lara Kauark, afirma que Magela agiu de má-fé nos vários pedidos de empréstimo que fez. O suposto recurso contraído junto a um banco para quitar a entrada jamais foi viabilizado. A dívida do comprador com a vendedora mais do que triplicou. Antes era de R$ 79 mil e depois saltou para R$ 240 mil.

Clarice relatou a Lara Kauark que Magela fazia pressão por mais dinheiro emprestado, dando garantias de que o recurso para quitação da entrada estava para ser liberado. “Certa vez, ele ligou para pedir mais dinheiro e recomendou que ela fosse rapidamente ao banco fazer a transferência. Na pressa de pegar o ônibus em Olivença, dona Clarice tomou uma queda”, contou Lara Kauark ao BG.

Clarice de Cunto, a vítima. Foto enviada por amigos.

O sobrinho, que era advogado e auxiliava Clarice a resolver muitos problemas, não resistiu ao câncer e faleceu. O irmão de Clarice (pai do rapaz) vivia em cadeira de rodas por ser paraplégico. Após a morte do filho o abalo foi tão forte que ele também morreu pouco tempo depois. “Os órgãos dele foram parando aos poucos”, explica Clarice.

A morte dos parentes deixou Clarice muito abalada e ainda mais vulnerável aos pedidos de Magela. Por não ter recebido todo o dinheiro, Clarice voltou a residir na casa junto com os novos “donos”. Como a situação não foi resolvida, o relacionamento debaixo do mesmo teto ficou difícil e ela disse que foi hostilizada algumas vezes, revela o casal Georgia Couto e Saulo Guimarães. Os dois foram vizinhos de Clarice em Olivença e tornaram-se amigos. Depois de um tempo decidiram morar na zona sul de Ilhéus, mas a amizade foi mantida. Quando perceberam que Clarice corria riscos, Georgia e Saulo pediram que ela saísse da casa e fosse passar um tempo na residência deles.

“Clarice estava nervosa, muito abalada e não conseguia raciocinar direito, por isso decidimos tirá-la da casa”, explica Saulo Guimarães, que é testemunha da aposentada no processo que tramita no fórum de Ilhéus. “Clarice sempre foi dinâmica, participativa e gostava de ler. Com a venda da casa, que se arrastava há dois anos sem receber todo o dinheiro, ela mudou bastante e ficou completamente desorientada. A família dela só ficou sabendo do problema depois. Com a venda do único imóvel que possuía, Clarice queria comprar um pequeno apartamento em São Paulo, guardar um pouco do dinheiro e viver o resto da vida sem passar necessidade”, conta Georgia Couto.

Clarice admite ter ficado anestesiada e triste. Em sinal de gratidão, disse que teria sido pior se não fosse a ajuda de Georgia e Saulo. O casal amigo orientou que ela contratasse a advogada Lara Kauark, ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/Itabuna. Kauark disse ao BG que a aposentada estava em situação de risco e ressaltou traços marcantes na personalidade da cliente: “ela não mente, pois todas as vezes que lhe faço perguntas, o relato sempre é igual”.

Clarice tem documentos que provam os empréstimos feitos e após reunir todas as provas, o processo foi protocolado em março de 2015 contra Magela, a esposa e as filhas (uma é a compradora oficial e a outra proprietária do apartamento de Itabuna). O BG não vai revelar todos os nomes, pois só Magela é pessoa pública.

Nos pedidos feitos ao juiz Julio Gonçalves da Silva Junior, Clarice busca receber os R$ 240 mil devidos por Magela e uma indenização por danos morais e materiais.  A advogada também pediu uma liminar judicial que bloqueasse a matrícula em cartório do apartamento localizado em Itabuna, pertencente a Magela e uma de suas filhas.  A liminar foi negada.

Em agosto de 2018, a filha médica de Magela, que conseguiu o financiamento na Caixa Econômica Federal (cuja maior parte do dinheiro foi “emprestada ao pai”), propôs um acordo considerado indecoroso pela advogada Lara Kauark.  A filha se dispôs a pagar apenas o valor da entrada e um pouco mais (R$ 80 mil no total) nas seguintes condições: R$ 35 mil no momento da homologação do acordo; 3 parcelas de R$ 7 mil semestrais e 24 parcelas mensais de mil reais a contar da homologação.

Lara Kauark - imagem do facebook

O dinheiro que Magela tomou emprestado de Clarice (R$ 161 mil) não foi reconhecido pela filha como parte da dívida. Na proposta, ela afirma não ter participado do contrato do empréstimo, e que a responsabilidade pelo valor devido é dos seus pais.

Ao recusar o acordo, Lara Kauark afirmou que a filha de Magela esteve várias vezes na casa e presenciou conversas entre os pais e Clarice. Lembrou o fato da ex-proprietária ter permanecido no imóvel, justamente por não ter recebido todo o valor. A advogada encarou a proposta como um “disparate” e disse que os devedores demonstraram “falta de caráter” ao não honrar os compromissos.

Segundo Lara Kauark, três endereços diferentes de Geraldo Magela foram informados à justiça, mas ele nunca foi intimado. Após inúmeras tentativas dos oficiais de justiça, Magela foi convocado para a audiência de conciliação por meio de um edital público, mas não compareceu na data marcada, no dia 02 de fevereiro deste ano.  Segundo a advogada, a ausência de Magela vai propiciar que ele seja julgado à revelia, ou seja, sem no mínimo ter contestado as acusações.

Lara Kauark afirma que Dona Clarice foi engambelada e é vítima de um estelionato afetivo. “Ela foi mantida sob erro por dois anos”, ressalta. Também contou ao BG que Geraldo Magela responde a outros processos na justiça trabalhista e já não possui nenhum bem em nome dele. A advogada acha que sua cliente vai ganhar a causa, só que Magela, a esposa e as filhas ainda poderão recorrer ao Tribunal de Justiça da Bahia. Além disso, quando o processo tiver um desfecho, o judiciário terá dificuldades para encontrar dinheiro e propriedades em nome do réu. Segundo Lara Kauark, Magela disse a Clarice que não acionasse a justiça, pois ele tem muitos “acessos”.

O BG perguntou a Lara Kauark por quais motivos Geraldo Magela não responde uma ação criminal pela prática de estelionato. Ela explicou que Dona Clarice tem medo de possíveis represálias e atentados contra a sua vida, por isso, resolveu entrar com uma ação apenas na vara cível. Apesar de uma lei estabelecer direito à prioridade para os idosos, a causa de Clarice tramita há cinco anos no fórum Epaminondas Berbert de Castro. Lara Kauark acredita que a causa será julgada logo após o retorno dos prazos processuais, paralisados devido à pandemia do novo coronavírus. O BG apurou que a Defensoria Pública do Estado da Bahia passou a acompanhar o caso devido à demora.

“Eu tenho 10 anos na advocacia. Faço parte da Comissão de Direitos Humanos da OAB/Bahia e fui presidente da comissão dessa mesma área na OAB/Itabuna. Essa é a história mais triste que eu já me deparei como advogada. Dona Clarice tem 73 anos. É uma mulher indefesa e idosa, sem filhos e marido. Ela tem medo de morrer e não receber o dinheiro. Para se fazer presente nas audiências, é obrigada a comprar passagens de avião. Aconteceu uma vez de a audiência ser desmarcada, e ela ter que arcar com os custos do cancelamento das passagens. Tudo isso me deixa muito sensibilizada e eu sei que Magela fez tudo de propósito, após ter pedido que Dona Clarice acreditasse em sua palavra. Vale lembrar que ele e a filha trabalham na área de saúde”, disse Lara Kauark à reportagem do BG.

Dona Clarice recebe R$ 1.544 de aposentadoria. Ela acredita que existe uma justiça muito acima desse mundo. “Dessa ninguém consegue se safar. Se eu tive que passar por isso, Deus é capaz de resolver”, afirma com fé. Ela assume os aborrecimentos com o processo e se diz injustiçada, pois em sua vida, garante que nunca teve um protesto judicial. “Nunca paguei juros e nunca atrasei contas, devido à formação que meu pai me deu”.

No dia 22 de abril, o Blog do Gusmão tentou ouvir Geraldo Magela sobre as acusações feitas por Dona Clarice. Enviamos mensagens via Whatsaap e e-mail, mas ele não deu retorno. No dia 25 de maio, tentamos falar com o secretário de saúde por meio da secretaria municipal de comunicação. Pedimos que uma jornalista da SECOM intermediasse o contato. Também não recebemos resposta. Vale lembrar que Geraldo Magela reside na casa que pertenceu a Dona Clarice. Neste momento de combate ao novo coronavírus, ele é um dos responsáveis pela gestão dos recursos da saúde que atendem o povo de Ilhéus, incluindo milhares de idosos.

A casa que pertenceu a Dona Clarice, hoje habitada por Geraldo Magela, localizada na rua Marechal Castelo Branco (conhecida como rua do meio), em Olivença. Foto: Blog do Gusmão.

No dia 04 de maio deste ano, o ator Flavio Migliaccio, 85, foi encontrado morto em seu sítio localizado em Rio Bonito, no interior do estado do Rio de Janeiro. Migliaccio deixou uma carta aos familiares com a seguinte afirmação: “a humanidade não deu certo”. A forma como a morte do artista aconteceu deixou muitas pessoas chocadas. Consagrado no teatro, cinema e televisão, ele esperava há mais de 20 anos o pagamento de uma indenização devida pela TVE. Este motivo e outros cansaram Flavio Migliaccio.

Dona Clarice espera há 7 anos pelo fim do seu problema. Ela assume que foi ingênua. “Nunca fui tontinha. Vivi a circunstância de ter sido enganada por um homem voltado para si e desonesto. Certa vez ele chorou para mim e me deu certeza de que me pagaria, pois o sonho dele era ter uma casa em Olivença. Fui enganada, não consigo explicar por que emprestei dinheiro para ele, mas não posso me desesperar e ficar doente. Sou dizimista e Deus é a minha religião”.

Emocionada ela afirma: “o golpe que me aplicaram não pode acabar com a minha vida. Deverei honrar até o fim a vida que Deus me deu”.


Fonte: Blog do gusmão

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